sexta-feira, 5 de outubro de 2012

Sombra e Farmácia

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Achei que hoje (02/10) faríamos uma caminhada pelo bairro da UBS e cheguei animado para isso, apesar do calor que fazia. Nada: tinha me confundido, hoje faríamos atividades dentro da unidade. A Aline e a Isabele foram encarregadas de se passarem por usuárias fictícias da unidade, apresentando queixas que se enquadrariam como demanda espontânea. O Eduardo foi designado para acompanhar o atendimento dos auxiliares de enfermagem e, a mim, coube acompanhar um usuário ou usuária da chegada à UBS até o final do atendimento. Atividade de sombra, nome oficial. Fiquei um pouco desconfortável antes de começar a atividade: eu iria sombrear ou assombrar um desconhecido?

Fiquei na porta da UBS, sentando num banquinho, conversando com um menino que também estava lá. Perguntei quantos anos ele tinha e ele não soube me dizer ao certo. Achava que tinha 9. Vejo uma mãe jovem empurrando um carrinho com um bebê. Olhei para ela e, como recebi um olhar como resposta, resolvi me dirigir a ela. Disse que era aluno de psicologia participando de um projeto na unidade e perguntei se ela me deixaria acompanhar seu atendimento na unidade. Ela disse que sim, muito despreocupadamente, e eu ainda falei que era só se ela se sentisse à vontade. “Não, tudo bem.”, me respondeu.

O filho dela tinha 5 meses e estava com o peito carregado. Vieram fazer inalação. Ela já tinha uma guia com a prescrição do tratamento e, ao apresentá-la na recepção, foi encaminhada para a sala onde havia o inalador. Chamou minha atenção que a recepção foi muito rápida, não houve nem um troca de olhares entre a recepcionista e a mãe. Enquanto esperávamos, a mãe foi me contando que fora primeiro “lá na USP”, onde o médico recomendou a inalação. Já era o terceiro dia que ela vinha na UBS. A criança estava muito tranqüila e fui brincar um pouco com ela. De repente, começamos a ouvir um choro da sala de vacinação e o bebê ficou inquieto. Já fazia um tempo que estávamos esperando. E ficamos mais um bom tempo ainda esperando; a mãe em pé com o bebê no colo, que agora tinha se acalmado. Soube, nesse meio tempo, que o bebê chorava muito toda vez que fazia inalação e que era a mãe quem aplicava a inalação, sozinha.

Quando a enfermeira montou o equipamento e mãe foi aplicar o inalador, vi que a criança ficava mesmo muito assustada. Tive a impressão de que ele – era um menino – se sentia sufocado pela máscara, um pouco grande para ele, e tinha a expectativa de que ia ficar sem ar. Ele ficava o tempo todo tentando afastar aquela máscara com as mãos, gritando e chorando. Foi aí que achei estranho não ter nenhum profissional para dar um apóio à mãe, que não tem muita prática com o inalador. Depois de muito ficar assustado, o menino foi se acalmando, acho que de exaustão, e quase dormiu.

A mãe foi contando que acorda muito de madrugada para trabalhar em um lugar distante do bairro em que mora. Chegava cedo em casa, pelo menos, e tinha sido esse o jeito que encontrara para estar mais com o filho. Com ela no trabalho, o bebê ficava com a avô pela manhã. Isso impossibilitava que a mãe fosse à UBS as três vezes por dia que o médico recomendou para fazer inalação: ia apenas uma. Terminada a inalação, nos despedimos e agradeci a ela por ter me deixado acompanhá-la. Se antes de abordá-la estava desconfortável, tinha terminado de ser “sombra” me sentindo tranqüilo, por ter tido a sensação de que não estava invadindo a intimidade dela e que ela até tinha gostado de conversar comigo (e vice-versa).

Segui, por sugestão da Gisela, para a farmácia, onde conversei com as duas técnicas que estavam lá, a Patrícia e a Natalie. Foi a Patrícia quem me apresentou a farmácia e o funcionamento do sistema. Conversei bastante com ela também sobre o trabalho, se ela gostava, a quanto tempo estava lá, se era cansativo. Ela me contou que às vezes tinha gente com dificuldade para entender como tomar os remédios e que elas inclusive tinham inventado maneiras de facilitar o entendimento, se valendo de saquinhos plásticos para separar as medicações e figuras ou etiquetas coloridas para marcar o período do dia em que devia ser tomadas. Apesar disso, apareceu recorrentemente na fala dela que era a farmacêutica quem lidava mais diretamente com os usuários, tanto é que elas a chamavam quando havia mal-entendidos e confusões. Também era a farmacêutica quem tocava os projetos da farmácia com a comunidade. Diante desse cenário, fiquei com a impressão de que o trabalho delas é mais isolado do que o de outros profissionais da unidade.

Lembrei, por conta disso, de uma situação que me contaram sobre um menino cuja escola estava muito preocupada com ele. Ele não falava. A professora nunca ouvira nenhuma palavra dele. Pai e mãe também não, quem sabe muito raramente. Em uma reunião dos pais com os funcionários da escola numa instituição de tratamento que o menino freqüentava – ele recebera o diagnóstico de autista – o porteiro da escola estava presente. Quando soube dessa preocupação, expressou uma surpresa total: o menino conversava todo dia com ele, na entrada, sobre futebol! Essa história me chama atenção para o quanto os profissionais que não estão direta ou explicitamente envolvidos na tarefa da instituição podem ter modos de relação muito interessantes com quem freqüenta esse lugar e que, assim, podem acabar realizando uma tarefa que não era aquela oficialmente designadas a eles.

Tudo isso me remete à questão que levantei na semana passada sobre os diferentes olhares para um mesmo objeto, se ele seria realmente o mesmo objeto. Tomando a UBS como esse objeto, um objeto evidentemente complexo, acho que cada olhar vai construindo sim uma representação própria desse lugar, a partir da percepção de alguns dos aspectos que o compõe e do olhar que desvela esses aspectos. Apesar de parecer única, igual ao objeto, essa representação não dá mesmo conta de todo o objeto. Na semana passada, por exemplo, o próprio espaço da farmácia não fazia parte da minha representação da UBS, muito menos as experiências que são vividas lá. Daí a importância de encarar-se o desafio de compartilhar as experiências e, quem sabe, ir construindo um campo comum de atuação e produção de saberes.

3 comentários:

  1. Olá, Miguel,
    Gosto muito das suas reflexões sobre suas experiências aqui na UBS!
    Sua bagagem na Psicologia acrescenta muito para nossos debates e proporciona reflexões fora do nosso meio usual!
    até mais,

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  2. Este comentário foi removido pelo autor.

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  3. Varias opiniões e olhares sobre um mesmo assunto (objeto) enriquecem as definições e conclusões que possamos fazer. Ver como cada um acompanha e passa pelas mesmas (parecidas) situações que eu passo é INTERESSANTÍSSIMO!
    Adorei ler essa experiência, seja por eu ter feito a mesma atividade ou seja pela riqueza de informações; acho muito legal como cada um já encarna um pouquinho no futuro profissional que irá se tornar.

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