Um relato de algo que aconteceu comigo na UBS que me fez pensar e sentir muita coisa.
Quando é que a gente começa a trabalhar? E que impacto isso tem na gente?
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Há duas semanas,
quando tivemos
reunião na quarta-feira (10/10), eu cheguei um pouco adiantado na UBS. Era um
dia de sol e tinha os óculos escuros pendurados na gola da camiseta. Sentei no
banco do corredor, onde os pacientes esperam ser chamados para consulta. Ótimo
momento pra ler meu livro e esperar a reunião começar.
Que ilusão! No que sentei, veio uma menina bem magra mesmo, mais que palito, e me tomou de sopetão.
"Segura isso daqui?" Ela tirou os óculos dela e, tchuf, enfiou a mão na gola da minha camiseta e pegou os meus. Não deu nem tempo de me apresentar. Perguntei o nome dela, acho que ela nem ouviu. Num instante, a menina colocou aquele óculos de adulto no rosto pequeno dela e começou a dançar.
"Cadê seu celular?!" "Pra que você quer celular?", estranhei. "Vai ligar pra alguém?" Não. Ela me respondeu que era pra tirar uma foto dela com os meus óculos. Ela tava tão empolgada! Ficou dançando e esqueceu do celular.
Depois, quando ela devolveu os óculos, começou a se interessar pela minha "bolsa de estudos". Deixei ela mexer um pouco nas minhas coisas da mochila. Comecei a me sentir um pouco invadido e achei que ela podia me passar alguma coisa. Será que ela tem conjuntivite e ficou no meu óculos? Psicólogo também pira, gente! Eu queria muito estar com ela, e estava, mas foi intenso.
"Vamo estudar?", ela me convidou. Nisso deixei meu incômodo um pouco de lado e aceitei o convite. Ela catou minha mochila e queria por nas costa. Mas ela era um palito! E minha mochila, super pesada. Tentei convencê-la do contrário: nada, ela nem ouviu. Antes do peso da mochila cair nas costa dela, segurei a alça de leve. Fomos andando assim, unidos pela mochila, ela na frente e eu atrás. Andando pra onde?
Quando vi, estávamos na porta de um consultório médico. A menina - cujo nome a essa altura eu já sabia - queria de todo modo entrar ali. Era pra me dar uma injeção. Fiquei desconfortável de entrar no consultório de sopetão. Uma coisa era o corredor, outra o lugar de trabalho de alguém. "N., pra entrar aqui a gente vai ter de pedir licença. Não dá assim, pra ir entrando." Ela choramingou um pouco, mas acabou concordando. Uma funcionária entrou no consultório e deixou eu e a N. entrarmos.
Assim que passamos da porta, a danada da menina fechou bem rapidinho e passou a tranca. "N., você vai trancar a gente aqui?!", falei num tom de brincadeira. Vejam a situação: a menina me tranca no consultório com uma funcionário que eu não conheço e não devia conhecer ela e, a mãe, do lado de fora, vendo a filha trancada com um sujeito desconhecido. Não deu um minuto e a mãe veio bater na porta. "N! N! Abre filha!" A menina berrou cada não! Falei a ela que iria abrir a porta, que não dava pra deixar a mãe do lado de fora, que era ela quem a tinha trazido à UBS. Quando consegui abrir a porta - porque a menina, apesar de palito, tinha força pra empurrar - ela se jogou no chão e se pôs a chorar. "Eu quero ficar aqui com o Miguel!", ela repetiu isso algumas vezes, no meio do choro. A gente mal se conhecia.
Passou o fuzuê e fui me apresentar pra funcionário que estava no consultório. Disse que "por coincidência", estranhei tanto quando falei isso, era aluno do PET da psicologia. A funcionário me perguntou se eu estava atendendo a menina. Disse que não, que estava só sentado no banco, esperando, e a menina veio falar comigo.
Depois, contando essa história pra Henriette e colegas, acabei falando que ir a UBS era ir na casa de outras pessoas. Como era estranho isso! E a Henriette me chamou atenção de como eu tinha sentido um outro universo ali, um cotidiano desconhecido, e que muita coisa acontecei na unidade. A vida estava lá, se desenrolando, preparando surpresas. "Miguel, pisou lá e pronto, já tá trabalhando." Será mesmo que eu só tava sentando no banco, esperando a reunião? Depois eu fiquei tão impactado, foram só dez minutos de interação, mas deu até pra me angustiar. Pisou e já tá lá. E quem é que cuida desse impacto todo na gente, quem cuida de quem cuida? Essa questão ficou bem forte pra mim.
Desse rebuliço todo, ficou o desejo de perguntar como tem sido o impacto de estar na UBS pra vocês do PET e pra quem trabalha na unidade. Também fiquei com vontade de ir atrás do que levou a N. e mãe na UBS. O encontro com a menina mexeu comigo. A mãe me contou que tem dificuldades em lidar com a filha, que disse ser muito autoritária. "Ela quer fazer tudo o quer, o tempo todo." Em seguida ao desentendimento com a mãe - agora indo para o outro lado - vi a N. sentada sozinha na escada, falando sozinha. Sozinha. Sozinha. Senti que ela precisa de alguém pra brincar, pra ajudar ela a ir dando forma e controlando esse impulso tão forte de agir e se expressar, que a deixa tomada. Vi também que mãe estava penando com a filha. Acho que ela não tinha autoridade nenhuma, nem saco de brincar com a menina. Ela tava bem cansada.
Que ilusão! No que sentei, veio uma menina bem magra mesmo, mais que palito, e me tomou de sopetão.
"Segura isso daqui?" Ela tirou os óculos dela e, tchuf, enfiou a mão na gola da minha camiseta e pegou os meus. Não deu nem tempo de me apresentar. Perguntei o nome dela, acho que ela nem ouviu. Num instante, a menina colocou aquele óculos de adulto no rosto pequeno dela e começou a dançar.
"Cadê seu celular?!" "Pra que você quer celular?", estranhei. "Vai ligar pra alguém?" Não. Ela me respondeu que era pra tirar uma foto dela com os meus óculos. Ela tava tão empolgada! Ficou dançando e esqueceu do celular.
Depois, quando ela devolveu os óculos, começou a se interessar pela minha "bolsa de estudos". Deixei ela mexer um pouco nas minhas coisas da mochila. Comecei a me sentir um pouco invadido e achei que ela podia me passar alguma coisa. Será que ela tem conjuntivite e ficou no meu óculos? Psicólogo também pira, gente! Eu queria muito estar com ela, e estava, mas foi intenso.
"Vamo estudar?", ela me convidou. Nisso deixei meu incômodo um pouco de lado e aceitei o convite. Ela catou minha mochila e queria por nas costa. Mas ela era um palito! E minha mochila, super pesada. Tentei convencê-la do contrário: nada, ela nem ouviu. Antes do peso da mochila cair nas costa dela, segurei a alça de leve. Fomos andando assim, unidos pela mochila, ela na frente e eu atrás. Andando pra onde?
Quando vi, estávamos na porta de um consultório médico. A menina - cujo nome a essa altura eu já sabia - queria de todo modo entrar ali. Era pra me dar uma injeção. Fiquei desconfortável de entrar no consultório de sopetão. Uma coisa era o corredor, outra o lugar de trabalho de alguém. "N., pra entrar aqui a gente vai ter de pedir licença. Não dá assim, pra ir entrando." Ela choramingou um pouco, mas acabou concordando. Uma funcionária entrou no consultório e deixou eu e a N. entrarmos.
Assim que passamos da porta, a danada da menina fechou bem rapidinho e passou a tranca. "N., você vai trancar a gente aqui?!", falei num tom de brincadeira. Vejam a situação: a menina me tranca no consultório com uma funcionário que eu não conheço e não devia conhecer ela e, a mãe, do lado de fora, vendo a filha trancada com um sujeito desconhecido. Não deu um minuto e a mãe veio bater na porta. "N! N! Abre filha!" A menina berrou cada não! Falei a ela que iria abrir a porta, que não dava pra deixar a mãe do lado de fora, que era ela quem a tinha trazido à UBS. Quando consegui abrir a porta - porque a menina, apesar de palito, tinha força pra empurrar - ela se jogou no chão e se pôs a chorar. "Eu quero ficar aqui com o Miguel!", ela repetiu isso algumas vezes, no meio do choro. A gente mal se conhecia.
Passou o fuzuê e fui me apresentar pra funcionário que estava no consultório. Disse que "por coincidência", estranhei tanto quando falei isso, era aluno do PET da psicologia. A funcionário me perguntou se eu estava atendendo a menina. Disse que não, que estava só sentado no banco, esperando, e a menina veio falar comigo.
Depois, contando essa história pra Henriette e colegas, acabei falando que ir a UBS era ir na casa de outras pessoas. Como era estranho isso! E a Henriette me chamou atenção de como eu tinha sentido um outro universo ali, um cotidiano desconhecido, e que muita coisa acontecei na unidade. A vida estava lá, se desenrolando, preparando surpresas. "Miguel, pisou lá e pronto, já tá trabalhando." Será mesmo que eu só tava sentando no banco, esperando a reunião? Depois eu fiquei tão impactado, foram só dez minutos de interação, mas deu até pra me angustiar. Pisou e já tá lá. E quem é que cuida desse impacto todo na gente, quem cuida de quem cuida? Essa questão ficou bem forte pra mim.
Desse rebuliço todo, ficou o desejo de perguntar como tem sido o impacto de estar na UBS pra vocês do PET e pra quem trabalha na unidade. Também fiquei com vontade de ir atrás do que levou a N. e mãe na UBS. O encontro com a menina mexeu comigo. A mãe me contou que tem dificuldades em lidar com a filha, que disse ser muito autoritária. "Ela quer fazer tudo o quer, o tempo todo." Em seguida ao desentendimento com a mãe - agora indo para o outro lado - vi a N. sentada sozinha na escada, falando sozinha. Sozinha. Sozinha. Senti que ela precisa de alguém pra brincar, pra ajudar ela a ir dando forma e controlando esse impulso tão forte de agir e se expressar, que a deixa tomada. Vi também que mãe estava penando com a filha. Acho que ela não tinha autoridade nenhuma, nem saco de brincar com a menina. Ela tava bem cansada.
Miguel, é muito interessante enxergar detalhes tão ricos de suas reações, percepções e reflexões sobre o que tem passado na UBS.
ResponderExcluirHoje mesmo eu estava discutindo um caso com o psiquiatra do NASF, falando sobre como a incidência de problemas de saúde mental em trabalhadores na UBS é alto, principalmente nas ACSs, que não tem um preparo tão intensivo quanto o restante dos profissionais.
É realmente uma questão importante: os cuidadores também tem que ser cuidados.
abraço,