Desde a reunião
na semana passada queria levar para o grupo minha vontade de que
compartilhássemos mais entre nós o impacto que a experiência na UBS tem tido
para cada um. Isso ficou mais forte quando soube que trabalharíamos com a
questão da violência na região, um tema que me empolgou muito mas também
assustou e me deixou ansioso. Como a gente vai trabalhar? Será que vai ser
perigoso? Violência como? O que o campo da saúde pode oferecer? Bulling? Como é
que isso?
Hoje quando nos
reunimos, eu era o único que estivera na reunião; a Gisela estava ocupada. Fui
contando brevemente para Isabela, Aline, Eduardo e Mara de como tinha sido a
reunião e já fui logo falando do tema da nossa equipe. Queria falar de algumas
inquietações, principalmente de sentir necessidade de criar um espaço no grupo
para trocar as experiências e para que o próprio grupo possa cuidar de si,
porque são experiências intensas, e indagar qual seria o nosso papel ao lidar
com a violência, principalmente indo à escola e identificando a violência lá
como bulling.
A primeira dessas
inquietações me leva a refletir como é o impacto do trabalho de cada
profissional da UBS e se há uma rede de apoio para eles. Acho que isso mexe com
uma estereotipia de que a doença está no paciente e a saúde no médico. Temos
falado muito de formas e causas de adoecimento dos usuários da UBS, esquecendo
que nós, estagiários e profissionais, também adoecemos e que entramos em
contanto com muito sofrimento no nosso trabalho, que já é desgastante. Somos,
inclusive, parte da comunidade da UBS, embora desempenhemos funções diferentes.
Fiquei imaginando que, se eu estou sentindo o peso da experiência no corpo e
querendo um espaço para conversar sobre isso, quem põe a mão na massa diariamente
deve ter mais necessidade ainda.
A relação com a
escola já me leva a pensar na tensão entre campos de atuações política cuja
tarefa social, talvez missão, é de natureza distinta: educar e cuidar. Lembro
de uma professora minha comentando, num evento sobre medicalização, que na
época do surgimento da psicanálise a luta do Freud e da Ana O., uma das
primeiras pacientes dele, era para que se reconhecesse o sofrimento psíquico
com uma grande questão diante da vida. Tratava-se de desejo, desejo de ser, e o
conflito que isso precipitava. Atualmente, ela comentava, as encruzilhadas e
agruras da vida se tornaram problemas médicos, doença. Trazendo essa dimensão
para a entrada da saúde na escola, fico preocupado com a relação que podemos
estabelecer com eles. Será que operaríamos no sentido de transformar o bulling
em um diagnóstico? A própria maneira como esse fenômeno é tratado
discursivamente já traz essa possibilidade, pois permite um descolamento do que
é observado a favor de uma nomenclatura abstrata, descontextualizada.
Interações danosas ou agressivas entre as crianças e adolescentes não são
novidades, o que é novo e está se transformando em moda é chamar isso de
bulling. Não é o fenômeno, mas a nomeação que se dá a ele, a qual tem origem nos
Estados Unidos e na problemática que eles viveram com massacres em escolas.
Penso que precisamos adentrar o mundo da escola e deixar que ele se mostre, que
ali apareça a violência tal como eles a vivem.
Nessa nossa
conversa de hoje, acabamos focando mesmo muito na violência no ambiente
escolar, identificado quase que totalmente com a questão do bulling. Percebi em
mim que a palavra violência gerou um desconforto – e penso que nas outras
pessoas também – e acabamos, aqui é uma hipótese, nos fixando naquilo que é
mais próximo a nossa experiência atual, que é o ambiente escolar. Deixamos de
lado a violência urbana, o PCC, que a Mara disse que atua na região, o tráfico
de drogas, as armas, enfim, muito medo ficou de lado. Não concordo com o foco no bulling. Seria importantíssimo pensar a violência no seu contexto amplo - como
uma cultura, um modo de relação, uma expressão do sofrimento e da vulnerabilidade social - até para que possamos problematizar a noção de
bulling e adentrar essas interações tais como elas se dão a ver e poder
compreendê-las a partir do estranhamento do nosso próprio olhar. Digo isso
porque estranhar pode nos levar também a perceber o que ali opera como
estratégia de sobrevivência ou está simplesmente naturalizado, é sim porque só
se considerou que podia ser assim. Para mim, ficou bastante forte um desejo do
grupo de nos lançarmos ao campo para conhecê-lo, em vez de ficarmos na sala
especulando sobre ele. Acabamos nos propondo a preparar uma visita inicial para
daqui a duas semanas.
Terminamos nossa
conversa 14h15. Havíamos combinado que hoje daríamos uma volta pelo bairro.
Confesso ter achado estranho quando soube que seria um passeio de carro. Tinha
expectativa de que seria uma caminhada e andar de carro gera um distanciamento,
apesar de ser mais confortável em tantos sentidos. Com a nossa conversa ainda
ressoando, meu olhar encontrou prontamente os desencontros do bairro: os
prédios altos e bem acabados no final de uma rua de construções ainda por
acabar, a área invadida que se estendia por trás e abaixo de um estacionamento
cheio de carros, quase todos novos e as casas grandes, que parecem terem saído
de Alphaville, do Parque dos Príncipes. Talvez por estar no carro tenha sido
muito forte a sensação de desencontro. Será que a pé o percurso teria relevado
por onde essas realidades tão diferentes se encontram e convivem? Uma
antropologia dos passos perdidos, como propunha o Michel de Certeau.
Ao longo do nosso
percurso, paramos em alguns lugares da região. Dois me impressionaram
sobremaneira. A área invadida era algo muito peculiar. Havia um comércio, não
lembro bem o que, e ao lado dele um corredor que dava acesso às construções e
moradias. Foi uma cena inédita para mim. Passei por esse corredor, feito de muros
de casas cujas janelas se abriam para ele, e avancei só um pouquinho e... um
monte de construções de improviso se espelhavam pelo terreno em declive. Não
cheguei a descer, só vi a paisagem. Quando estava voltando para o carro, uma
senhora contava ao Seu Wilson, motorista da UBS, que ali era uma área de muitos
escorpiões, que estava perigoso, o filho dela queria dormir com mosquiteiro.
Depois paramos no
lugar que as Pastorinhas oferecem atividades para a população do bairro e
entramos numa sala de reforça. As crianças respondiam em coro à professora, sem
muita espontaneidade. Fazia muito tempo que eu não adentrava em contato com
isso. Elas pareciam estar adestradas, ou sob efeito de hipnose. Acho que
prefiro as crianças tidas como terríveis da escola onde vamos trabalhar. Tem
mais vida, eu acho.
Saindo dessa aula
de reforço, ficou mais forte para mim o desejo de abordar a questão da violência no seu
contexto, sem nomear com as nossas palavras uma questão central. É um bairro
tido como violento e seria muito interessante pensar essa produção em todo o
seu relevo. Por que em uma escola os alunos são considerados terríveis, pulam o
muro para fumar maconha, e numa classe de reforço, no mesmo bairro, a situação
é outra? Essa outra situação está isenta da violência? A autoridade da
professora sobre os alunos não pode se transformar em violência, a depender do
manejo e do contexto? A chave aí me parece ser o bairro e como a escola, com
todos os seus atores, lida com como é viver e trabalhar no Jardim d’Abril.
Olá Miguel!
ResponderExcluirNossa, gosto muito do seus post! Dentre tantas ideias que gostei e me identifiquei, achei essa bem importante:"Seria importantíssimo pensar a violência no seu contexto amplo - como uma cultura, um modo de relação, uma expressão do sofrimento e da vulnerabilidade social". Também acredito que a violência é algo amplo que é um reflexo da forma de organização social que a gente vive, da cultura e tantas outras coisas.
Estou tendo contato com uma metodologia de justiça restaurativa que achei muito interessante. A partir desse método percebemos que todos são co-autores de um ato de violência ( mesmo que não estando envolvido diretamente)... Isso acaba sendo uma responsabilidade social e não individual ( como a maioria tende a achar). Adorei as reflexoes!
Bjaao