sexta-feira, 19 de outubro de 2012

16/10/2012


Desde a reunião na semana passada queria levar para o grupo minha vontade de que compartilhássemos mais entre nós o impacto que a experiência na UBS tem tido para cada um. Isso ficou mais forte quando soube que trabalharíamos com a questão da violência na região, um tema que me empolgou muito mas também assustou e me deixou ansioso. Como a gente vai trabalhar? Será que vai ser perigoso? Violência como? O que o campo da saúde pode oferecer? Bulling? Como é que isso?

Hoje quando nos reunimos, eu era o único que estivera na reunião; a Gisela estava ocupada. Fui contando brevemente para Isabela, Aline, Eduardo e Mara de como tinha sido a reunião e já fui logo falando do tema da nossa equipe. Queria falar de algumas inquietações, principalmente de sentir necessidade de criar um espaço no grupo para trocar as experiências e para que o próprio grupo possa cuidar de si, porque são experiências intensas, e indagar qual seria o nosso papel ao lidar com a violência, principalmente indo à escola e identificando a violência lá como bulling.

A primeira dessas inquietações me leva a refletir como é o impacto do trabalho de cada profissional da UBS e se há uma rede de apoio para eles. Acho que isso mexe com uma estereotipia de que a doença está no paciente e a saúde no médico. Temos falado muito de formas e causas de adoecimento dos usuários da UBS, esquecendo que nós, estagiários e profissionais, também adoecemos e que entramos em contanto com muito sofrimento no nosso trabalho, que já é desgastante. Somos, inclusive, parte da comunidade da UBS, embora desempenhemos funções diferentes. Fiquei imaginando que, se eu estou sentindo o peso da experiência no corpo e querendo um espaço para conversar sobre isso, quem põe a mão na massa diariamente deve ter mais necessidade ainda.

A relação com a escola já me leva a pensar na tensão entre campos de atuações política cuja tarefa social, talvez missão, é de natureza distinta: educar e cuidar. Lembro de uma professora minha comentando, num evento sobre medicalização, que na época do surgimento da psicanálise a luta do Freud e da Ana O., uma das primeiras pacientes dele, era para que se reconhecesse o sofrimento psíquico com uma grande questão diante da vida. Tratava-se de desejo, desejo de ser, e o conflito que isso precipitava. Atualmente, ela comentava, as encruzilhadas e agruras da vida se tornaram problemas médicos, doença. Trazendo essa dimensão para a entrada da saúde na escola, fico preocupado com a relação que podemos estabelecer com eles. Será que operaríamos no sentido de transformar o bulling em um diagnóstico? A própria maneira como esse fenômeno é tratado discursivamente já traz essa possibilidade, pois permite um descolamento do que é observado a favor de uma nomenclatura abstrata, descontextualizada. Interações danosas ou agressivas entre as crianças e adolescentes não são novidades, o que é novo e está se transformando em moda é chamar isso de bulling. Não é o fenômeno, mas a nomeação que se dá a ele, a qual tem origem nos Estados Unidos e na problemática que eles viveram com massacres em escolas. Penso que precisamos adentrar o mundo da escola e deixar que ele se mostre, que ali apareça a violência tal como eles a vivem.

Nessa nossa conversa de hoje, acabamos focando mesmo muito na violência no ambiente escolar, identificado quase que totalmente com a questão do bulling. Percebi em mim que a palavra violência gerou um desconforto – e penso que nas outras pessoas também – e acabamos, aqui é uma hipótese, nos fixando naquilo que é mais próximo a nossa experiência atual, que é o ambiente escolar. Deixamos de lado a violência urbana, o PCC, que a Mara disse que atua na região, o tráfico de drogas, as armas, enfim, muito medo ficou de lado. Não concordo com o foco no bulling. Seria importantíssimo pensar a violência no seu contexto amplo - como uma cultura, um modo de relação, uma expressão do sofrimento e da vulnerabilidade social - até para que possamos problematizar a noção de bulling e adentrar essas interações tais como elas se dão a ver e poder compreendê-las a partir do estranhamento do nosso próprio olhar. Digo isso porque estranhar pode nos levar também a perceber o que ali opera como estratégia de sobrevivência ou está simplesmente naturalizado, é sim porque só se considerou que podia ser assim. Para mim, ficou bastante forte um desejo do grupo de nos lançarmos ao campo para conhecê-lo, em vez de ficarmos na sala especulando sobre ele. Acabamos nos propondo a preparar uma visita inicial para daqui a duas semanas.

Terminamos nossa conversa 14h15. Havíamos combinado que hoje daríamos uma volta pelo bairro. Confesso ter achado estranho quando soube que seria um passeio de carro. Tinha expectativa de que seria uma caminhada e andar de carro gera um distanciamento, apesar de ser mais confortável em tantos sentidos. Com a nossa conversa ainda ressoando, meu olhar encontrou prontamente os desencontros do bairro: os prédios altos e bem acabados no final de uma rua de construções ainda por acabar, a área invadida que se estendia por trás e abaixo de um estacionamento cheio de carros, quase todos novos e as casas grandes, que parecem terem saído de Alphaville, do Parque dos Príncipes. Talvez por estar no carro tenha sido muito forte a sensação de desencontro. Será que a pé o percurso teria relevado por onde essas realidades tão diferentes se encontram e convivem? Uma antropologia dos passos perdidos, como propunha o Michel de Certeau.

Ao longo do nosso percurso, paramos em alguns lugares da região. Dois me impressionaram sobremaneira. A área invadida era algo muito peculiar. Havia um comércio, não lembro bem o que, e ao lado dele um corredor que dava acesso às construções e moradias. Foi uma cena inédita para mim. Passei por esse corredor, feito de muros de casas cujas janelas se abriam para ele, e avancei só um pouquinho e... um monte de construções de improviso se espelhavam pelo terreno em declive. Não cheguei a descer, só vi a paisagem. Quando estava voltando para o carro, uma senhora contava ao Seu Wilson, motorista da UBS, que ali era uma área de muitos escorpiões, que estava perigoso, o filho dela queria dormir com mosquiteiro.

Depois paramos no lugar que as Pastorinhas oferecem atividades para a população do bairro e entramos numa sala de reforça. As crianças respondiam em coro à professora, sem muita espontaneidade. Fazia muito tempo que eu não adentrava em contato com isso. Elas pareciam estar adestradas, ou sob efeito de hipnose. Acho que prefiro as crianças tidas como terríveis da escola onde vamos trabalhar. Tem mais vida, eu acho.

Saindo dessa aula de reforço, ficou mais forte para mim o desejo de abordar a questão da violência no seu contexto, sem nomear com as nossas palavras uma questão central. É um bairro tido como violento e seria muito interessante pensar essa produção em todo o seu relevo. Por que em uma escola os alunos são considerados terríveis, pulam o muro para fumar maconha, e numa classe de reforço, no mesmo bairro, a situação é outra? Essa outra situação está isenta da violência? A autoridade da professora sobre os alunos não pode se transformar em violência, a depender do manejo e do contexto? A chave aí me parece ser o bairro e como a escola, com todos os seus atores, lida com como é viver e trabalhar no Jardim d’Abril.

Um comentário:

  1. Olá Miguel!

    Nossa, gosto muito do seus post! Dentre tantas ideias que gostei e me identifiquei, achei essa bem importante:"Seria importantíssimo pensar a violência no seu contexto amplo - como uma cultura, um modo de relação, uma expressão do sofrimento e da vulnerabilidade social". Também acredito que a violência é algo amplo que é um reflexo da forma de organização social que a gente vive, da cultura e tantas outras coisas.

    Estou tendo contato com uma metodologia de justiça restaurativa que achei muito interessante. A partir desse método percebemos que todos são co-autores de um ato de violência ( mesmo que não estando envolvido diretamente)... Isso acaba sendo uma responsabilidade social e não individual ( como a maioria tende a achar). Adorei as reflexoes!

    Bjaao

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