domingo, 4 de novembro de 2012

23.10.2012


Havíamos planejado fazer visitas domiciliares com as agentes comunitárias. Desde de manhã chovia muito, e continuou assim quando chegamos à UBS. Acabamos desmarcando as visitas e nos resolvemos por ficar na unidade, conversando sobre o projeto. A Mara e a Gisella propuseram, a partir da leitura que elas fizeram do blog, que nós fossemos conversando mais sobre nossas opiniões e aflições em relação ao trabalho. A Isabella não estava se sentindo bem – alergia à tinta; a UBS estava sendo pintada – e por isso resolvemos fazer reunião lá fora, na entrada da unidade.

Descemos algumas cadeiras de uma sala do NASF e fizemos uma roda lá na entrada. Foi interessante ficar no meio do movimento da unidade, o que deu uma sensação mais nítida de pertencer àquela comunidade. Comecei falando, a pedido da Mara e da Gisella, o que eu tinha escrito no blog sobre a necessidade que sentia de nos colocarmos mais no projeto e de construir uma equipe. Trouxe um pouco minha experiência na Psicologia com a prática de supervisão, que acho interessante não só para analisar um caso ou uma situação mas também para clarear o campo de trabalho e desanuviar os sujeitos do impacto da experiência. Gosto do espaço de supervisão exatamente porque, ao falar desse impacto, a escuta do grupo vai localizando-o no interior de uma prática coletiva e as aflições podem ser compartilhadas, o que dá uma alívio tremendo e oferece novas possibilidades de significação para a experiência, portanto novos caminhos para serem percorridos no trabalho.

A Aline nos contou que, ao saber que faríamos um projeto sobre violência, se sentiu muito impotente diante do tema e foi pesquisar que intervenções já haviam sido feitas em torno do bullying. A Gisella também se colocou em relação ao projeto, dizendo que sentia ser mais difícil para ela analisar um caso de violência do que atender alguém que havia sofrido algum tipo de violência. Ela se percebia como de posse de um escudo no atendimento; na discussão de caso, no entanto, se via mais implicada e saía tocada por aquilo. O Eduardo, do seu lado, trouxe a vontade de trabalhar com adolescentes e de se debruçar sobre as questões ligadas ao uso de álcool e drogas. Aí esbarramos em uma limitação do projeto: esse seria uma tema a cargo do PET Saúde Mental. Embora estivéssemos fora da unidade, ainda havia cheiro de tinta. A Isabella preferiu não falar; não estava se sentindo bem e a Mara disse que tínhamos flexibilidade para delinear o projeto, que a questão da escola tinha surgido por um demanda que ela tinha recebido de uma das escolas da região.

Fomos continuando a conversa. A Gisella, a determinada altura, perguntou se a Isabella não preferia passar na demanda. Ela estava piorando visivelmente. Disse não e preferiu descansar no carro do Eduardo, para ficar longe da tinta. Contei que tinha lido um texto interessante sobre a intervenção de psicólogos na escola, que se preocupava com os efeitos da entrada desse profissional no campo escolar. O grande mote do texto era trazer a dimensão de uma luta por concepções de educação e de sujeito no interior da escola, fazendo ver um campo de forças no qual o psicólogo seria mais um agente. Mandei o texto para o grupo, porque, apesar de ser sobre o trabalho de psicólogos, serve de inspiração para cada um refletir sobre a entrada da sua profissão no campo escolar. Outra contribuição interessante é o deslocamento que a autora faz para que seja possível intervir não no objeto da queixa escola, sim no campo de produção da queixa. Desloca-se do indivíduo, para que não se reafirme a individualização de problemas em que a escola e o sistema sócio-educativo estão implicados mas não se reconhecessem implicados, para as relações de força e poder em que se constituem as práticas educativas e as próprias queixas.

A Gisella começou a ficar preocupada com a Isabela, que tinha voltado para nossa roda. Fiquei impressionado que, à distância, ela notou que a Isabela estava ficando com a respiração mais curta. Ela, então, acabou voltando para o carro e a Gisella resolveu começar um atendimento ali mesmo, fora da unidade. Não demorou muito para uma assistente de enfermagem vir tirar os sinais vitais e logo a Carol, médica, desceu para continuar o atendimento. Foi tudo muito rápido. A Isabela tinha piorado muito. Estranhei que os olhos dela estavam muito para fora, com as veias expostas, e o rosto, muito pálido. Com as medicações que a Carol e Cris trouxeram, além de muita água, a Isabella foi melhorando também rapidamente. E com isso acabou nossa terça-feira na UBS, com muita coisa para refletir no caminho de volta.

Como pode um lugar de promoção de saúde expor seus usuários à situações que podem desencadear problemas como o que aconteceu com a Isabela? Não se trata de apontar culpados, mas chama atenção o paradoxo, da mesma natureza da história que alguém contou na reunião ampliada da faxineira da Faculdade de Letras que não sabia ler. A UBS estava sendo pintada em dias da semana e o caso da Isabela já é o terceiro de problemas acarretados pela tinta, segundo a Gisella. Por outro lado, ficou tão evidente com essa situação o quanto estamos todos sujeitos a adoecer, por mais que trabalhemos ativamente para que os outros e nós fiquemos saudáveis.

Foi bom termos compartilhado um pouco do que o projeto tem evocado na gente. Parece que um campo comum começou a se configurar a partir da experiência de cada um, um campo que pode acolher a sensação de impotência, o desejo de mudar o rumo do projeto, as críticas, enfim, aquilo que cada um com a sua história  vai podendo desvelar de um objeto em comum. Algo que se esclareceu para mim com essa conversa é que estamos muito aflitos para delinear logo um projeto ou uma atuação. Estava compartilhando dessa pressa, que, agora, perdeu o sentido para mim: o PET é um projeto de 2 anos e, se a idéia é que pensemos em algo que possa ser incorporado pela unidade, não vejo por que correr com a elaboração do projeto de intervenção e pesquisa.

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