Primeira
atividade na UBS do Jardim d’Abril. Na reunião, havíamos acertado que eu e o
Eduardo seríamos uma dupla, cuja preceptora seria a Gisela, enfermeira. Quando
cheguei à UBS, encontrei a Mara, assistente social e também preceptora, com a
sua dupla, Isabela, da odontologia, e Aline, da nutrição. Em vez de nos
separarmos em dois grupos, faríamos os seis uma visita aos espaços da UBS e assistiríamos
à capacitação de agentes de saúde sobre hanseníase.
A Mara e a Gisela
foram nos guiando pelos corredores e salas da unidade. Os serviços nos foram
apresentados quando chegávamos ao local em que eles aconteciam. Curioso isto,
não tinha me ocorrido na hora: é muito forte a ligação entre uma prática e o
espaço em que ela ocorre, tão forte que a prática se deu a conhecer a partir do
lugar que ela ocupa na unidade. Nesse sentido, interessante pensar que há uma
especialização muito grande no espaço – a farmácia, a sala do dentista,
consultórios médicos, sala do serviço social – e que ela realmente deve ser
necessária para dar conta das demandas que o a UBS recebe. Por outro lado, o
SUS tem como horizonte uma prática universal e integrada, que podemos entender como sendo
para todos e também por todos. Que espaços da UBS facilitam um trabalho
interdisciplinar, integrado? Agora me ocorrem apenas as salas de reunião.
Durante a visita
das instalações, me senti inundado de informações. O serviço é muito extenso e
me pareceu cheio de meandros e especificidades, que gostaria de ter conhecido
com mais calma. A cada lugar que eu ia entrando, um mundo ia se esboçando para
mim: todo um jeito de se pensar a saúde, as relações com a comunidade, como se
lida com os usuários e que demanda costumam ser identificadas com cada setor. O
que me chamou mais atenção foi com as práticas do serviço social ora se
aproximam muito de práticas da psicologia ora contrastam bastante com elas. Lá
se trabalha muito com famílias, pensando a dinâmica familiar, o que não é
estranho para a psicologia. No entanto, tive a impressão que se trabalha a partir de pârametros já concebidos do que seria uma família funcional, uma noção que pode ser problematizada por muitas correntes de pensamento da psicologia.
Interrompemos a
visita no meio, acho que tínhamos terminado de visitar a sala de vacinação,
para assistir à capacitação dos agentes de saúde. Nesse momento me percebi com
um completo estrangeiro, pois se tratava de uma médica apresentando slides sobre hanseníase para
vários agentes comunitários. Formas de detectar a doença, dados
epidemiológicos, fotos de pessoas com a doença. Perguntas
sobre neurite e como diferenciá-la da hanseníase. Aí já estava me sentindo um
marciano: o que um aluno de psicologia está fazendo aqui? Acho que não era o
único que pensava assim. No final da apresentação a médica se dirigiu a mim:
“Primeiro ano?” “Não. Estou no terceiro. E cada um aqui é de uma faculdade
diferente.” “Ah, mas vocês já tiveram dermatologia?” “Não eu faço psicologia!”
“Ah...” Ela, então, começou a conversar com o Eduardo, que estuda medicina. Depois de um tempo,
voltou a falar comigo e disse que, “de psicológico”, a hanseníase tinha muito
preconceito. Que ela recomendava para os pacientes nem contarem o diagnóstico
deles, só para a esposa ou esposo. E quando ia justificar o afastamento do
trabalho, colocava outro CID. Fiquei pensando que lugar a psicologia pode ou poderia ocupar nesse cenário. Voltando-se para o trabalho dos agentes? Colocando-se em diálogo com os outros profissionais, em uma proposta interdisciplinar?
Terminamos a
visita rapidamente. Faltava pouco coisa para conhecer. Visitamos a sala em que se
faz um primeiro atendimento, a farmácia e a área restrita para funcionários. Ah,
fomos também ao RH assinar o ponto. Enquanto dirigia, voltando da UBS, fui
pensando que o que mais me ocupou durante as atividades foi o interesse em
saber como é possível construir um campo em que as diferentes práticas e os
diferentes saberes ligados à saúde interajam e convivam colaborativamente. Pelo
que vi lá, não é fácil. Há muita especialização dos profissionais e cada um
goza de um status profissional que pode ser mais ou menos valorizado. Também me interessou
observar como já há uma posição pré estabelecida para cada profissão. Achei
estranho, por exemplo, estar numa capacitação sobre hanseníase, como se eu não coubesse ali e não fosse um assunto da minha área.
E a médica, ao me identificar com a psicologia, me endereçou questões
específicas. Pensei, ainda nesse sentido das diferentes profissões em um mesmo
campo, que cada uma dessa profissões compõe um olhar singular para esse campo.
Seria diferente se a Ana Paula me apresentasse a UBS, pela sua pessoa e pela
sua profissão. O olhar de um pessoa constrói uma imagem muito própria daquilo
que o olho observa. Se são muitos os olhos e olhares, mais diversas serão essa
imagens, embora elas sejam evocadas por um mesmo objeto do olhar. Mas será que
realmente é o mesmo objeto? A UBS apresentada pela Mara e pela Gisela seria a
mesma que outras pessoas me apresentariam?
(Nicole, acabei de ler seu relato. Fiquei curioso para saber se você se sentiu uma paciente fictícia o tempo todo ou se, no meio do processo, acabou se percebendo como paciente de fato.)
Olá Miguel. Gostei muito do seu texto! Achei bem interessante suas reflexões e indagações. Em relação ao papel da psicologia no cenário da hanseníase, considero que vocês teriam um papem muito importante sim. Como foi falado, as pessoas que tem hanseníase podem sofrer bastante preconceito e/ou discriminação. Além disso,após a descoberta da doença, o cotidiano dessas pessoas, a auto-imagem, a forma de se colocar no mundo, de se sentirem no mundo, podem sofrer alterações, gerando diversas questões, que considero que a escuta e aconselhamento psicológico nesses casos poderia ser muito importante. Isso também vale para a família dessas pessoas e os agentes comunitários que também estariam em contato com a pessoa com hanseniase e isso também poderia despertar questões internas a serem trabalhadas.
ResponderExcluirRespondendo a sua pergunta, acho que me senti a maior parte do tempo como paciente ficticia mesmo. Não me senti assim em relação a espera para as consultas e quando estavam sendo feitos os exames em mim ( que eram reais).
Beijos!
Miguel trabalhar com profissionais de diversas áreas nos ajudam a montar o "quebra-cabeça" para melhor atender e entender com os diversos olhares nossos usuários. Para isso o respeito a diversidade é importantíssimo, não existe uma única verdade!
ResponderExcluirOi, Mara! Concordo com você: acho que muita conversa, respeitoasa!, pode ser feita entre as áreas nesse sentido. Quando disse problematizar, não quis valorar outras concepções, sim dar ênfase que o pensamento da psicologia iria por outros caminhos que não o da funcionalidade. Até amanhã, M.
ResponderExcluirMiguel, que análise mais profunda sobre sua visita à UBS! Você levantou vários temas sobre os quais eu não havia ainda parado para pensar, na correria do dia-a-dia da UBS!
ResponderExcluirAdorei suas colocações sob o ponto de vista de um estudante de psicologia, abrindo para os demais uma nova perspectiva, para ampliar reflexões.
Esse é um dos motivos pelos quais é tão importante um trabalho multiprofissional: cada um, a partir de sua formação, tem um olhar "diferente" e especializado sobre um assunto (pode ser um problema de um paciente, ou até a UBS, como neste caso!). Isso enriquece a discussão de um caso, e amplia as possibilidades de resolução.
Quanto aos espaços comuns na UBS, além das salas de reunião, utilizamos também os consultórios. Não sei se você referia a trabalho integrado entre os profissionais, ou a uma prática integral voltada ao paciente.
Para que todos trabalhem juntos e falem a mesma língua, e para que possamos ajustar essa sintonia, temos várias reuniões durante a semana:
entre a equipe técnica (médicos, enfermeiros, auxiliares de enf., farmacêutica, dentista, assistente social, gerente), só entre médicos, só entre enfermeiros, da equipe (médico+enf+2aux.enf+6 ACSs) com o NASF (vocês conhecerão), reuniões só da equipe...
Há também grupos na unidade envolvendo vários profissionais (por exemplo, grupo de dor crônica com psicóloga, fisioterapeuta e educadora física), oferecendo cuidado integral ao paciente.
abraço,